terça-feira, 6 de julho de 2010

O rapaz

O rapaz (teria pouco mais de 20 anos) nunca fumava no café
Mas costumava sentar-se na zona dos fumadores
Se a mesa do seu agrado estava ocupada revelava alguma ansiedade
Escolhia a que estivesse mais próxima do seu lugar preferido e quando este vagasse quase corria para lá se sentar
Os empregados já se tinham habituado ao rapaz
Traziam-lhe um galão e um croissant sem qualquer recheio
Tinha sempre um livro para ler e nunca era o mesmo
À vezes num pequeno bloco escrevinhava qualquer coisa
Um dia saiu da rotina e pediu um copo de água com gelo
De resto a sua voz mal se ouvia quando dizia qualquer coisa mas os empregados sabiam ler os lábios
Numa tarde de segunda-feira chegou com um portátil
E uns auscultadores
Alheou-se por completo do sítio onde estava
Daí em diante vinha sempre com o computador e os auscultadores
E passou a fazer gestos em vez de murmurar
Os empregados sabiam linguagem gestual

E a nova rotina continuava sempre com o galão e o croissant
E os gestos

Num domingo de manhã apareceu com um fino traço negro nas pálpebras superiores e rimmel nas pestanas
Os empregados às vezes eram cegos

Com o correr do tempo iam sucedendo várias alterações na cor do traço e do rimmel
Em comunicação telepática os empregados discutiam o que melhor lhe ficava
E concordaram que era mesmo o negro no traço e o azul no rimmel

Fotografia



Fotografia antiga

Bruno Wheinhals

PAÍS DO MElO-DIA


Atravessado pelo zumbido de um único ruído de carros
e pela música infinda de uma estação de rádio
o vazio do meio-dia

A cidade uma configuração constituída
por rede de aço e estruturas de betão

Atrás das gruas brilha
a água da bacia portuária
indolente em todas as cores de óleo usado

As ruas varridas
pelo sol recozidas

O apressado asfalto da cidade
um caminho de fuga
para a paisagem pedregosa

Uma língua quente rasga o corpo em suor

As cores são pó
não pó
são pedras

Bruno Wheinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
e outros poemas
Tradução colectiva

domingo, 4 de julho de 2010

Rosa Alice Branco

11. PINTURA

1. O CHEIRO DO ORVALHO


As palavras chamam-me para dentro do poema
e arrastam-te comigo. Tanto vento
que se levantou de repente a esta hora.
Dormias?
Redemoinho entre as letras como um catavento
e sei confusamente que não estamos aqui
como sei que nunca viste uma árvore
ou um telhado cheio de pássaros
para podermos trocar a nossa ignorância
como um pacto de amor
que nos acorda quando nasce o dia.
Soletramos então a palavra «árvore»
que nasce no vidro da janela
mas já estamos longe
no cimo do papel
como duas silhuetas
absorvidas a colher o cheiro da terra.

E contudo as palavras mexem-se,
ouço as vozes atravessarem a lareira
o ressoar das letras espaçadas
as cores quentes à volta do fogo.
Não, não dormias a essa hora.
Eras tu que me arrastavas para dentro do poema
quando o vento dançava nos meus passos.
E eu pensava nas cores das faias
e como as folhas se juntam lá em cima
ou então pensava no grito do telhado
cheio de pássaros no papel
para te dar tudo
o que nunca vimos e ouvimos
na simplicidade
do orvalho da manhã.

Rosa Alice Branco
soletrar o dia
obra poética
edições quasi

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Herberto Helder


Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis,
até uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão – é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha.

A minha idade é assim - verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.

Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.

Eu trabalho nas luzes antigas,
em frente das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz seca, canta-se
no calor. É uma idade cor da salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade e uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade quebram-se
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
E para a frente que as águas escorregam.

Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.

A FACA NÃO CORTA A ÁGUA
súmula & inédita
Herberto Helder
Assírio & Alvim

Henrique Ruivo





s ruas da cidade
mas também dos campos
henrique ruivo
Capa e hors-texte de André Ruivo
& etc

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Ulla Hahn




Como nasce um poema?

Em andamento. Com os pés assentes na terra, com as palavras na cabeça. Do movimento nasce um ritmo, as palavras aproximam-se, imagens acompanham-me a passada, até me forçarem a parar e a escreve-las. É então que nasce o poema: das coisas por que passamos. Que atravessamos. Que fizemos. Só está vivo aquilo que se mexe. Os poetas são coleccionadores. "Procuram com paciência para encontrar por acaso" (Valéry).

Júbilo

E depois dias há em que o júbilo
é indescritível no meu peito
batem cem corações felizes.
Todos os cuidados pelo esgoto abaixo
e tu arrastado com eles.
O mundo está de novo aí.
Nada mais a esperar
nada mais a temer
de ti.


Basta

Viver não basta queremos sonhar
em jardins encantados florestas com árvores
que transformam serras mecânicas em rosas e pão

Andar não basta queremos pairar
sobre ruas em que tanques e porta-aviões
se desfazem em leite e mel
Comer não basta queremos beijar
gente bela basta que
seja gente.

Clara loucura

O amor não é um anjinho com asas
nem Cupido roliço a atirar dardos
o amor é um anjo de entre muitos
que a ira de Deus baniu dos céus estrelados

quando como Ele quis ser esse amor: belo
cruel e cego e todo poderoso não
deste mundo desde então ele mostra
o semblante em constante mutação

do anjo exterminador que faz dançar
ao som do chicote os corações até
que para abater os fracos e caídos
sobre o pescoço lhes assenta o pé

e ai fica girando no tacão
para lá para cá sem pressas com rigor
Um ou outro lá conseguem escapar
e a senha é: Já te não tenho amor.


A SEDE ENTRE OS LIMITES
Ulla Hahn
Versão de João Barrento
Relógio d´Água